sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Crítica: Perdido em Marte, de Ridley Scott

“Perdido em Marte” é um filme surpreendentemente otimista e divertido. Mesmo contando uma história que tem uma carga dramática inerente (envolvendo um personagem sozinho em um planeta deserto), este novo trabalho de Ridley Scott até tem sua dose de melancolia, mas nunca perde o bom humor e, mais do que isso, se mostra um manifesto “pró-humanidade”, nos mostrando que nossa espécie, mesmo com seus inúmeros problemas, vive seu melhor período histórico e tem uma tendência natural para a empatia e a união para resolver problemas.


A trama é bem simples: durante uma missão tripulada em Marte, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) é dado como morto após se ferir em uma poderosa tempestade e é deixado para trás por seus companheiros. Mas por sorte ele sobrevive e tem que tentar se virar sozinho em um planeta com condições desfavoráveis e com recursos limitados. Ao mesmo tempo, na Terra, os cientistas da NASA tentam organizar um plano para trazê-lo de volta a tempo e em segurança.

Logo em seus 10 minutos iniciais o filme já é hábil em estabelecer, através de seus diálogos ágeis e seu competente elenco, um descontraído clima de camaradagem entre os membros da tripulação (o que se mostra de fundamental importância no decorrer da narrativa), e de maneira igualmente competente o clima logo fica tenso (reparem nas luzes piscando atrás dos personagens – recurso já utilizado pelo diretor em “Alien”) e sem perder tempo o protagonista já se encontra sozinho em Marte e a história pode se desenrolar.







Ridley Scott é conhecido por abordagens mais pessimistas (como em “Blade Runner” e “O Gângster”), além de sempre demonstrar facilidade para criar um clima épico (mesmo em trabalhos medianos como “Cruzada” e “Prometheus”), mas comédia não é o seu forte (vide o desastre que foi “Um Bom Ano”). Sendo assim, é surpreendente que neste “Perdido em Marte” o diretor demostre um timing cômico tão afinado (ainda que deva muito a seus atores – como abordarei daqui a pouco) e aposte em uma abordagem tão otimista – se em “Blade Runner” até mesmo os replicantes (robôs) se mostravam mais humanos do que os próprios humanos, e em “Alien” a vida dos tripulantes era colocada em segundo plano pela corporação (que se interessava muito mais pelo conhecimento científico proveniente da criatura monstruosa), aqui a vida de um único personagem vale todos os investimentos possíveis da NASA, e até mesmo países que são muitas vezes encarados como rivais, como os EUA e a China, podem se unir em prol de um objetivo comum (salvar uma vida). E até mesmo a tecnologia, que parece sempre ser a principal responsável pelo distanciamento entre as relações humanas, surge aqui como a grande heroína da história, possibilitando melhores comunicações e facilitando o trabalho de todos.


E por mais que o filme se mostre uma grande reverência à ciência, é interessante como ele não encara a religião como um problema ou como fruto da ignorância, chegando até a trazer o protagonista criando fogo a partir da madeira de um crucifixo (uma metáfora que não deixa de ter sua dose de ironia, mas acaba servindo para mostrar que tudo tem sua utilidade).









O roteiro escrito por Drew Goddard (adaptado do romance de Andy Weir) é hábil em deixar as explicações científicas acessíveis para todos os públicos (sem precisar apelar para diálogos muito expositivos), e também ao introduzir a burocracia enfrentada pelos personagens – desde a relação com a mídia até as dificuldades de financiamento das missões (mas, mais uma vez, sem nunca soar chato). E se a opção de trazer o protagonista fazendo pequenos vlogs para registrar suas ideias pode fazer o texto soar um pouco expositivo demais (como se ele estivesse falando diretamente com o público), pelo menos ele faz questão de justificar essa escolha dentro do contexto do filme – afinal, ao gravar seus vídeos o personagem pode ao menos tentar fingir uma “socialização”. Além disso, são nesses momentos que ficamos sabendo dos perigos que ele terá que enfrentar e das inúmeras coisas que podem dar errado.



Aliás, é interessante como o senso de humor do protagonista no início parece meio nervoso e desajustado (reparem na maneira quase imatura como ele se aproxima da câmera para falar algo em um de seus primeiros registros), e aos poucos vai surgindo de maneira mais orgânica, servindo como um escudo contra as situações adversas nas quais ele se encontra.







E igualmente interessante é ver como o roteiro acha espaço para pequenas ironias – como no momento em que vemos um personagem na Terra dizendo “no que será que ele está pensando?” (se referindo ao protagonista), e no segundo seguinte o vemos na base em Marte ouvindo Disco Music.

A fotografia de Dariusz Wolski também merece destaque por trabalhar bem o 3D (destaque para os planos aéreos de Marte e as cenas em gravidade zero) e por diferenciar muito bem os cenários onde se desenrolam a trama (Marte é sempre fotografado com paleta laranja bem forte, enquanto a nave com os outros tripulantes é cheia de branco e azul, e a Terra tem cores mais chapadas e frias).



 











Mas muito da força do filme se deve ao seu elenco – que, curiosamente, por ser homogeneamente tão competente acaba até encobrindo o problema de excesso de personagens.

Matt Damon demonstra um timing cômico perfeito, que é essencial para o funcionamento do filme, e faz seu personagem ser agradável (assim, torcemos pela sua sobrevivência) com seu senso de humor que é uma mistura bem dosada de ironia com prepotência.

Mas o elenco secundário também não fica muito atrás. Jessica Chastain (atriz que surgiu há pouquíssimo tempo, mas que já esteve presente em pelo menos uns 10 filmes interessantes) surge com uma das personagens mais conflituosas do longa (seu sentimento de culpa por ter deixado Mark para trás, ainda que de forma não intencional, é atormentador), mas também uma das mais maduras e racionais – e a cena que envolve uma votação entre a tripulação representa o auge de seu trabalho.







Michael Peña é outro que pôde incluir seu timing cômico em seu personagem, mas também tem a chance de trazer uma interessante carga dramática à trama – a cena que envolve uma conversa online entre ele e o protagonista no meio no filme é possivelmente o momento mais tocante da narrativa.







Já Jeff Daniels merece créditos por conseguir evitar que seu personagem seja desagradável, convencendo com sua experiência ainda que seja o mais pessimista e represente muitas vezes um obstáculo para o resgate de Mark Watney.







Também não posso deixar de elogiar o trabalho rápido, mas extremamente eficiente, de outros dois atores: Mackenzie Davis e Donald Glover (este último ainda tem a chance de protagonizar uma das cenas mais engraçadas do filme – aquela envolvendo um pregador de papel).







E o que dizer da escolha de trazer o personagem interpretado por Sean Bean no meio de uma referência a Senhor dos Anéis?


(Para quem não se lembra, Bean interpretou Boromir em “A Sociedade do Anel”).


A montagem também é ágil em acompanhar três núcleos narrativos diferentes (um em Marte, um na Terra, e outro na nave), e ainda consegue criar uma sequência memorável ao som de Starman, de David Bowie – com pequenas rimas visuais (como ao trazer um conserto de veículo tanto em Marte quanto na Terra) e também uma interessante ironia com a letra da música (que traz em seu refrão o verso: “There’s a starmen waiting in the sky” – “Tem um homem das estrelas esperando no céu”).




 Também é interessante como o filme celebra a diversidade e foge de um patriotismo americano cego: a ajuda da China é de fundamental importância para a história; o diretor das missões espaciais é negro; um dos tripulantes da expedição é de origem latina e outro alemão (ele chega até a usar a bandeira de seu país em seu uniforme); e a líder da nave é uma mulher – mais uma vez reforçando uma das mensagens da obra: vivemos no melhor período histórico possível.




Não que o filme seja perfeito, pois não é. Em nenhum momento ele deixa de ser previsível (o que não é necessariamente um problema muito grande), o clímax é um pouco longo demais, e também confesso que senti um pouco de falta do protagonista durante a hora final (ainda que, levando em consideração a longa duração da narrativa, isto acabe sendo um mal necessário).

Mantendo seu senso de humor até seus créditos final, que são ao som de “I Will Survive” (“Eu Vou Sobreviver” – olha a ironia), “Perdido em Marte” é o melhor filme de Ridley Scott em muito tempo, e é também um manifesto otimista sobre a humanidade e sua capacidade de se ajudar e resolver problemas – e diante de tantos filmes que se dedicam a mostrar como o ser humano é falho e corrompido, um sopro de esperança é sempre bem-vindo.

Muito Bom!

João Vitor, 21 de Fevereiro de 2016.

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